Mulheres-mães protagonistas da própria história

ENTREVISTA | “Contar pra meus filhos que sou um homem, não foi tão sofrido, porque temos diálogo.”

ENTREVISTA | “Contar pra meus filhos que sou um homem, não foi tão sofrido, porque temos diálogo.”

Compartilhe esse artigo

Diversidade e respeito. Essas são as palavras que devem fazer parte não somente no nosso vocabulário, mas nas nossas ações. Os dados não mentem, só no Brasil, 163 pessoas trans foram mortas em 2018, segundo levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), separando por cor, 97% são travestis e mulheres trans, 82% são pretas ou pardas e 60,5% tem entre 17 e 29 anos.

Preconceito ou falta de informação? Os fatores vão além. Vivemos em uma sociedade machista e patriarcal que demoniza a identidade de gênero, dando aval para pessoas, inclusive mulheres, serem transfóbicas. Infelizmente, discursos de ódio contra pessoas trans também têm sua parcela de culpa, você não aperta o gatilho nem levanta a faca, mas seu discurso encoraja outras pessoas a fazerem o que foi feito com palavras. Por isso, estamos constantemente escrevendo, levantando dados e pregando o respeito, por que é tão difícil?

Diante dessa situação, a Revista Mães que Escrevem convidou Samuel Andrade, homem trans, que fala um pouco sobre o processo de transição, criação dos seus filhos, sexualidade e dá algumas dicas de como não disseminar a transfobia. Samuel tem 29 anos, atualmente, reside em Criciúma-SC, é estagiário na área de Psicologia e mantém uma página no Facebook chamada Conquistas de Homens Trans Reais.

MQE: Sobre sua transição. Talvez algumas pessoas que estejam lendo essa entrevista também queiram saber sobre. Como foi o processo de autodescoberta? Quando disse para si: eu sou um homem!?

Samuel: Eu sempre digo que o processo de descoberta começa de fora pra dentro. Ao contrário do que muitas pessoas pensam, para a maioria da comunidade trans, o questionamento sobre o seu próprio Ser se inicia quando o ambiente nos força a estes questionamentos. Afinal, não nos sentimos “diferentes”, somos quem somos e isso não é questionável, até alguém falar “ei, isso não está ‘nos conformes’, você é diferente”.
O meu processo de autodescoberta começou recentemente, cerca de dois anos atrás. Antes de tudo, eu me assumi como uma mulher lésbica, depois de sair de um relacionamento com um homem (cis) que durou 8 anos, do qual tenho dois filhos como resultado. Mas se eu puxar um pouco além e aquém, consigo lembrar de detalhes de minha infância que já me apontavam coisas que me faziam “diferente” do que a sociedade esperava de mim.
Então, depois de passar um ano e alguns meses vivendo como uma mulher lésbica, os questionamentos sobre quem eu realmente era surgiram. Eu não me via, não me encaixava mais. Meus pensamentos, minhas vontades, meu EU, nada se encaixava com o papel que eu estava exercendo. Foi quando eu comecei a tentar entender minhas motivações. Eu entendo, hoje, que começar a faculdade de psicologia, estar num relacionamento com uma mulher (cis), ter me afastado das imposições da minha mãe, não me relacionar mais com homens (cis), tudo contribuiu para que eu me “quebrasse” para reconstruir. Toda grande mudança precisa de uma ruptura. Então, esse ano, veja bem, é que eu consegui olhar no espelho e falar em voz alta: eu sou um homem. Eu preciso fazer alguma coisa para acabar com esse sofrimento que estou vivendo (a *disforia com meu corpo). E assim eu comecei o processo de transição.

Samuel – foto arquivo pessoal.

MQE: Autoaceitação e criação dos filhos. Como foi (ou está sendo), o processo com seus filhos? Você chegou a falar com eles sobre sua transição?

Samuel: Eu tenho dois filhos. Ane Sophia (8 anos, atualmente) e Raul Gabriel (5 anos, atualmente). Tendo em vista que eles sempre tiveram uma criação baseada no diálogo aberto sobre diferenças, sejam elas quais forem, contar pra eles que eu sou um homem não foi tão sofrido. Eu acredito que ter preparado o terrenos com informações pertinentes e adequadas para as idades foi de grande importância. Sophia entendeu e aceitou perfeitamente, desde o início. Raul, por ser mais novo, talvez, não deu tanta importância para as mudanças que viriam (e virão). A única preocupação que surgiu, na época, foi se eu deixaria a barba crescer. Eles não querem que eu tenha barba. (risos)

MQE: Você acha que o processo de transição é mais difícil ou igual para pessoas com filhos e sem filhos?

Samuel: Isso é subjetivo demais! Não existe transição mais fácil ou mais difícil: o que temos é um processo que depende. Depende do ambiente no qual o sujeito está inserido, depende do apoio, depende da quantidade (e qualidade) de informações que ele e os seus têm. Tudo depende.

MQE: Sobre hormônios. Você faz pelo SUS ou particular? Acredita que o sistema público deixa a desejar sobre transsexualidade, ou está satisfeito?

Samuel: Atualmente, faço pelo particular, mas já estou me encaminhando para conseguir seguir pelo SUS, pois pretendo fazer a cirurgia da mastectomia masculinizadora (retirada total dos seios [ou intrusos, para alguns homens trans]). Ao meu ver, tanto particular quanto público é de uma carência colossal de preparo dos profissionais. Falta informação, preparo, tato, humanização em todos os pontos.

MQE: E seus relacionamentos? Sua orientação sexual causa indignação? Você é bi, hetero ou pan? Como sua orientação após a transição impactou na sua vida e na das pessoas à sua volta?

Samuel: Sou uma pessoa bastante segura de mim, nunca consegui enxergar a transsexualidade como algo que eu deveria pontuar sempre que conheço alguém. Mas conheço pessoas trans que encontram grande dificuldade em se relacionar, principalmente com pessoas cis. Mais uma vez, a subjetividade entra e eu digo: depende. Eu estou começando a entender minha própria sexualidade, depois do início da transição. Eu não sei em qual sexualidade me encaixo, mas já descobri coisas sobre mim. Sinto atração por mulheres (**cis e trans), homens trans, ***pessoas não-binárias… Quando eu terminar de entender isso, volto aqui e aviso para vocês. Em relação às pessoas ao meu redor: não consigo imaginar uma realidade na qual a opinião alheia afetaria meu comportamento.

MQE: Sei que deve ser chato para você falar o que deve ou não ser falado por uma pessoa cis que, de alguma forma, sai como discurso transfóbico. Mas, para você, quais são as falas que as pessoas devem evitar?

Samuel: Não perguntem qual é o nome morto de uma pessoa trans. NUNCA. Não digam que uma pessoa trans é apenas um espectro de uma sexualidade, que essa pessoa está confusa sobre performar determinado gênero. Não perguntem se a pessoa já fez “a cirurgia”. Não falem “pinto lésbico”, “macho de saia”. Não resumam pessoas a genitálias. Não importa se você conhece a pessoa a vida inteira, se essa pessoa falou que quer ser tratada por determinado gênero, você apenas aceita e respeita. Nunca faça perguntas invasivas, não importa o nível de intimidade. Se a pessoa confiar em você, ela falará O QUE QUISER E QUANDO QUISER.

MQE: Qual orientação você daria a uma pessoa que está passando pela transição?

Samuel: Terapia! O processo de autodescoberta é um caminho a ser trilhado, acompanhado, lado a lado com profissionais que serão capazes de te dar a mão, o ombro, o que você precisar. Se você está em dúvida, questione, debata, procure ajuda. Nunca, absolutamente nunca, é tarde para ser quem você é. Você não está sozinho, está tudo bem sentir medo, a gente passa por vários momentos de medo. A coisa boa é: sobrevivemos a todos eles.

Pai ou Mãe? Samuel responde com um vídeo em seu perfil pessoal. Clique AQUI para assistir.


Glossário:

*Disforia: é uma condição caracterizada pelo desconforto persistente com marcas sexuais ou de gênero que remetam ao gênero atribuído ao nascer. 

**Cis: Pessoa que se identifica com seu gênero de nascença.

***Pessoas não-binárias: pessoas que não se percebem como pertencentes a um gênero exclusivamente.

Compartilhe esse artigo

Leitura relacionada

Últimos Artigos

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *