Mulheres-mães protagonistas da própria história

COLUNA | “Falar sobre os abusos que sofri, é romper com esse círculo de dominação e controle sobre meu corpo”

COLUNA | “Falar sobre os abusos que sofri, é romper com esse círculo de dominação e controle sobre meu corpo”

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Este texto pode levantar alguns gatilhos por conter descrição de estupro

Estes dias eu tenho revisitado muitas memórias de infância e voltei há uns 30 anos… (Sim, tenho algumas poucas memórias de quando tinha 04 anos de idade). Eu era uma criança muito feliz, gostava muito de brincar de boneca, de comidinha e me dedicava com tamanha seriedade às brincadeiras de criança. Sempre fui obediente e muito educada. Lembro dos meus 08, 09 anos… Ainda gostava de brincar com as outras crianças, mas os adultos me fascinavam. Suas conversas, seus jeitos, o jogo de carteado, os segredos ditos em voz baixa para as crianças não entenderem, me atraia muito mais. Talvez, por essa maior identificação com os adultos, muitos deles diziam que eu era muito calma, responsável para minha idade, uma criança “madura”. 

Há um tempo atrás num jogo de búzios “reconheci” Nanã como dona do meu Ori. Eu não sou feita no Santo, mas devido o Candomblé estar há muitas gerações na minha família, tomo a liberdade, com todo respeito, de dizer que sou filha de Nanã e enxergo características dela na criança que eu fui. 

Voltando aos meus 08 anos… lembro que sempre frequentava a casa da minha avó materna aos finais de semana. Ela tinha um quadro de um Preto Velho na parede da sala e quando eu olhava para aquele quadro sentia um misto de medo, admiração e respeito.

Com 10 anos recém completados, fui batizada na Igreja católica. Minha mãe optou por realizar o batizado com uma idade mais avançada, porque ela não teve muito sucesso no batismo da minha irmã mais velha e os padrinhos quase não participavam da sua vida. Então comigo ela decidiu fazer diferente. Minha madrinha era uma as melhores amigas da minha mãe, elas trabalhavam juntas e nós tínhamos uma boa relação. Na medida do possível, ela participava da minha vida. Era casada com um homem bem mais velho do que ela, quando olhava pra ele lembrava do quadro do Preto Velho na parede da sala da minha avó, sentia um misto de medo, admiração e respeito. Hoje sei que a energia dele em nada se assemelha a dos Pretos Velhos.

Então no domingo, numa manhã de sol fui batizada na Igreja Católica Apostólica Romana, pela minha madrinha e o esposo dela, meu padrinho. Como eles não tinham filhos devido a esterilidade de um dos dois, ela sempre pedia aos meus pais que me deixassem dormir na casa deles. Foi lá onde aconteceu o primeiro abuso sexual, emocional e físico que sofri, por quem deveria me proteger. Esses abusos duraram algum tempo da minha infância, mas logo cresci e podia escolher não mais frequentar a casa deles.

Eu nunca contei aos meus pais, nunca tive coragem e a vida acabou nos distanciando dos meus padrinhos. Hoje em dia não temos nenhum tipo de contato. Após quase duas décadas ainda me lembro dos detalhes, do constrangimento, da dor. Acho que essa dor no fundo nunca vai passar. É muito triste lembrar da criança que fui… que teve que lidar com sonhos reprimidos, abuso, com o fato de nunca ser considerada bonita, com sexismo, machismo e racismo.

Pensar talvez que a forma com que conduzi minha vida teria sido diferente se não fossem essas violências, é deprimente. Dar nome e forma à tudo isso é só mais uma forma de não enlouquecer, porque não acredito em cura para tal violação. Às vezes a gente esquece, mas numa terça-feira à tarde, de um dia qualquer essas lembranças se atravessam à outras lembranças da vida nos atormentando.

O segundo abuso aconteceu quando eu tinha mais ou menos 30 anos e demorou pra cair a ficha de que se tratava de um estupro. Na verdade eu me sentia tão culpada que negava o que havia acontecido. Tinha saído com um cara e após ter bebido um pouco além da conta, apaguei e acordei com ele me penetrando e não consegui ter nenhuma reação, só rezava pra acabar logo. Talvez por não ter reagido a culpa tem sido minha companheira por todos esses anos. 

O terceiro abuso aconteceu mais ou menos 01 ano após o segundo, dessa vez eu havia aceitado carona de um “amigo”. Após várias investidas dele, de dizer que NÃO e empurrá-lo, cansei de lutar e ele me estuprou. Novamente eu não consegui dizer nada e esse silêncio anda de mãos dadas com a culpa até hoje.

Eu li há um tempo atrás um artigo que falava sobre as repercussões do abuso sexual da infância na vida adulta e me identifico com todos. Alguns deles são: Gravidez precoce, conduta hipersexualizada, dificuldades para ter orgasmo, baixa autoestima, depressão, comportamento autodestrutivo e etc. Acredito que tudo isso me levou a um altíssimo grau de vulnerabilidade me deixando exposta a novas situações.

O fato de escrever sobre isso agora é não ter mais medo. Não tenho medo dos monstros disfarçados de homens, não tenho medo do julgamento dos outros e nem do meu. Romper com esse silêncio é romper com esse círculo de dominação e controle sobre meu corpo; é me reconciliar com a criança e a mulher que fui e sou; é valorizar a minha coragem e força de ser quem eu sou e proclamar em nome de todas as forças e das minhas ancestrais que enquanto meninas, mulheres, negras, não tiverem autonomia sobre seus corpos não haverá paz.

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